domingo, 10 de dezembro de 2017

Ensaio sobre a Maresia




I


rosa dos ventos

foz da brisa
ao lamber das águas

via láctea
e têmpera a sagitário,



II

fogo solar

matriz de aurora
estela e sanselimão

rota aberta de
adestrar gaivina e mar,



III

agulha de marear

o rumo traçado
no leme da vaga

embriaga o vento ao navegar,



IV

sulcos de mar

as rugas do sal
no rosto tisnado

paleta aguarela de sol,



V

murmúrios de búzio

os salmos da lua
a parir na vazante

cantos da alga aos iodores,



VI

águas do fundo

raiz da maré
ao correr do vento

medula e sabor a maresia.





Admário Costa Lindo
Solaris o Oitavo Mar (2011)





Pintura Digital
ciclo do Mar
série Aves Marinhas
a. costa lindo





Epigramáticos




1.

Voz oca
a decompor-se
em corpo:

de que glossa
a glote?


2.

Hálito
de lâmina
entre língua
e ar:

declinando
os lábios.


3.

Luminante
luz
num mínimo
murmúrio:

limiar ou imo.


4.

Salíneo
som
lunar:

húmido
de azul.


5.

Desde que
delírio
erecta
a língua
liquefeita?

6.

Desviava o reverso
da falha, devolvendo
o cerco:

se ínvio
era o invés.


7.

Diâmetro
da morte
amortecendo
certo:

de que centro
tenso?


8.

Adormecida
mão: sem ritmo
ou teclas
de um só vão
destino.


9.

Sol cego
doutro aedo
ido:
num sol
stício
breve.


10.

Dentre os úberes
lentos: leite lácteo
ou mel lúbrico
das cabras
estelares.






José Augusto Seabra
Epigramáticos
in “Nova Renascença”, nº 2, vol. I





sábado, 9 de dezembro de 2017

makamba

palavras aos meus amigos em dia de aniversário






quando escuto estas vozes
folhas da mesma palma,
quando leio estas frases
gérmenes da mesma alma,
vejo-me e sinto-me rei
de um país deserdado.

rostos d'halo luminoso
são a lente diáfana
a limpidez da memória
que me traz d'outro espaço
vetusto tempo venturoso.

salmo
fado ou batuque
lágrima choro asnidade,
casa
cubata ou tapume,
nada lhes trava a vontade.

trazem no peito amarrado
o génio preso à saudade,
buscam no fel a doçura,
fincam do braço a firmeza
e trazem à tona a verdade.


quando leio estas vozes
lírios da mesma palma,
quando escuto estas frases
rosas da mesma alma,
vejo-me e sinto-me rei
de um país reinventado.



Admário Costa Lindo
Makamba ou O Voo do Flamingo





notas:
BATUQUE. kimbundu. 1. Instrumento de percussão; bombo, tambor. Apresenta formas variadas (Goma, Puíta, Xingufo) e designações várias de acordo com a região, aspecto, material utilizado na sua confecção e som produzido. 2. O som produzido pela percus-são do instrumento. 3. Dança, divertimento ou festa com acompanhamento de batuques. Esta é a concepção mais moderna de batuque, mas não se esgota aí o conceito. Pode ser uma manifestação solista do instrumento; uma actuação instrumental acompanhada de outros como a dicanza, a gaêta, os chocalhos de cabaça, etc., ou pode ter acompanha-mento de vocalizações harmónicas, cânticos de cariz social, ou refrães apenas poéticos. O batuque é uma espontaneidade anímica dos povos africanos.

CUBATA. do kimb. Casebre de barro seco, coberto de capim seco, folhas de palma ou mateba. Variando a sua forma de povo para povo, genericamente a cubata da metade N do país é rectangular e circular a dos povos do S. Nas zonas urbanas usa-se ser construída de tábuas de madeira e chapas metálicas, podendo ser de chapas onduladas industriais ou de aproveitamento de tambores e bidões de óleos e similares.

MAKAMBA. kimb. Amigos.







Kákulu-Kábasa






frescos anos, em cerne e alma
breve,              me transmudam
praia a praia em largo mar.
corro maresias transumantes
eu,                   mestiço de mim,
e me cresço em gomos de tacula.
                                       
verdes anos, em carne e alma
leve,                 me transladam
costa a costa e mesmo mar.
colho rosmaninhos transmontantes
eu,                          bi-ego de mim,
e renasço em ritos de carqueja.

no ver e no ler
eu canto sempre
                           búzio
                           ou zimbo


e crio no peito
laivos de múcua enclausurados

e domo no peito
travos de mel amendoados.

pela xana, de palavra branda
vão os dias do cacimbo

no montado as formigas abrem alas
que do maio há já caminho:

saber sentir
entre os dedos d’uma mão
o fio mel da cereja,

saber sentir
entre os dedos d’outra mão
o fio gel da gajaja

é ser
fruto e alma.

e da alma
a memória
desagua em corpo

kákulu
e kábassa

gémeo de mim.


Admário Costa Lindo
o bico-de-lacre e o tarrote
(dos pássaros sem fronteiras e do bicho careta)
II – o livro dos bicos-de-lacre

- inédito -


notas:
CACIMBO. kimbundu. Humidade própria dos climas tropicais e equatoriais; época do frio, que decorre entre 15 de Maio e 15 de Agosto.

GAJAJA. tupi e kimb. Fruto comestível da gajajeira, Spondias mombin, muito aromático e de sa-bor agridoce.

KÁBASSA. kimb. O gémeo que nasce em segundo lugar.

KÁKULU . kimb. O primeiro gémeo a nascer.

MÚCUA. kimb. Fruto do imbondeiro.

TACULA. Pterocarpus tinctorius, árvore de cerne vermelho coral; um pó preparado com a ser-radura é utilizado em ritualismo.

XANA. utxokwe. Anhara. Planície arenosa, correspondente africano da charneca, na região central de Angola, atravessada por cursos de água, com vegetação rasteira formada principal-mente por gramíneas e arbustos de pequeno porte, podendo apresentar-se alagada.

ZIMBO. kikongo. Olivancillaria nana. Búzio, molusco gastrópode. A primeira moeda de troca angolana. O zimbo ou jimbo (kimbundu) era apanhado na ilha de Luanda, propriedade do Rei do Congo e escolhido por tamanhos, do que dependia o seu valor “facial”.




sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

(Lisboa com suas casas de várias cores)




Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores…
À força de diferente, isto é monótono.
Como à força de sentir, fico só a pensar.

Se, de noite, deitado mas desperto
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares famtásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores,
Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.

Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.



Fernando Pessoa
Poemas de Álvaro de Campos







voltar, amigo, é fácil



voltar, amigo, é fácil:
basta abrir a cicatriz
sofrida, da alma dúctil
e seguir pela matriz

corrente rio que nos dá memória:
picada batida,
a ferida aberta em flor,
a floresta
daquilo que somos e não perdemos,
a vida partida
ofensa sarada
e o que nos resta:
                                              a glória

de ser.


Admário Costa Lindo
Makamba ou O Voo do Flamingo (2013)








quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Proémio




cacimba
um furor ou lago um caminho
que nos leva da seca à raiz das águas.

sê-de
estrada ou picada tanto faz
dizias!

afastem de mim essa água que não medra
porque dos lábios
brota apenas ansiedade.

insistimos
e ficaste a saber que havia um

destino adiante:
um mar um rio que nos verte no sangue a liberdade.



Admário Costa Lindo

Solaris, o oitavo mar (2011)






notas:
Cacimba. (do Kimbundu) Cova ou poça que recebe água das chuvas; buraco aberto para se procurar ou armazenar água.

Diário








Marão

Serra, seio de pedra
Onde mamei a infância.
Amor de mãe, que medra
Quando medra a distância.

Dura severidade
Tapetada de acenos
Às ilusões da idade
E aos deslises pequenos.

Velha raiz segura
À universal certeza
De um gesto de ternura
E um pouco de beleza.

S. Martinho de Anta, 23 de Maio de 1944.

Miguel Torga
Diário, vol. III



Nirvana

Paz das montanhas, meu alívio certo.
O girassol do mundo, aberto,
E o ccoração a vê-lo, sossegado.
Fresco e purificado,
O ar que se respira.
Os acordes da lira
Audíveis no silêncio do cenário,
A bem-aventurança sem mentira:
Asas nos pés e o céu desnecessário.

Gerês, 1 de Agosto de 1953.


Miguel Torga
Diário, vol. VII



Panorama

Pátria vista da fraga onde nasci.
Que infinito silêncio circular!
De cada ointo cardeal assoma
A mesma expressão muda.
É de agora ou de sempre esta paisagem
Sem palavras,
Sem gritos,
Sem o eco sequer duma praga incontida?
Ah! Portugal ccalado!
Ah! povo amordaçado
Por não sei que mordaça cconsentida!

S. Martinho de Anta, 28 de Setembro de 1966.


Miguel Torga
Diário, vol. X



Eco


Ah, terra transmontana
Que não tens um cantor à tua altura!
Um Marão inspirado,
Um Douro inquieto,
Um plaino aberto
De carne e osso,
Capaz de recriar noutra verdade
Esta grandeza austera.
Onde as pedras parecem ter vontade,
E nenhuma vontade desespera.

S. Martinho de Anta, 18 de Setembro de 1970.




Miguel Torga
Diário, vol. XI



Doiro


Suor, rio, doçura,
(No princípio era o homem…)
De cachão em cachão,
O mosto vai correndo
No seu leito de pedra.
Correndo e reflectindo
A bifronte paisagem marginal.
Correndo como corre
Um doirado caudal
De sofrimento.
Correndo, sem saber
Se avança ou se recua.
Correndo, sem correr,
O desespero nunca fesagua…

Régua, 16 de Setembro de 1962.


Miguel Torga
Diário, vol. IX









Regresso Ao Lar





Ai, ha quantos annos que eu parti chorando
D’este meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi ha vinte?... ha trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para me eu lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida…
Só achei enganos, decepções, pesar…
Oh! a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida,
Canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago d’amargura o coração desfeito…
Vê que fundas maguas no embaciado olhar!
Nunca eu sahira do meu ninho estreito!...
Minha velha ama que me deste o peito,
Canta-me cantigas para me embalar!...

Poz-me Deos outrora no frouxel do ninho
Pedrarias d’astros, gemas de luar…
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobresinho…
Canta-me cantigas de fazer chorar!

Como antigamente, no regaço amado,
(Venho morto, morto!...) deixa-me deitar!
Ai, o reu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-me cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas, manso, muito manso…
Tristes, muito tristes, como á noite o mar…
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minh’alma durma, tenha paz, descanso,
Quando a Morte, em breve, m’a vier buscar!...


Guerra Junqueiro
Os Simples








BioBibliografia 2018

Biografia : Sou reformado do Comércio & Serviços e dedico os tempos livres que, logicamente, são todos os momentos do dia e da noite,...