quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Quissanje

Quitandeira da Quitanda

Quitandeira sem cuidados,
à tua quitanda em venda
mandei hoje três recados,
pela Cassua Quilenda.

Dizia eu nessa fala,
nas falas que te mandei,
que, tendo ido à Quissala,
ainda lá não te encontrei.

Pelo que me resolvi
a escrever-te uma mucanda,
e a contar-te o que sofri,
Quitandeira da Quitanda…

– Adorável vendedeira
de ananases e goiabas,
eu quero ter  a maneira
de podermos combinar
o que queres de alambamento
para contigo falar…
Que assim finde este tormento
de tanto te procurar…

Quero dar-te uns lindos panos
de sarja azul, de primeira,
para que os olhos profanos
te invejem nessa maneira,
de andar tão cheia de graça
a mais bela Quitandeira,
que, sendo negra, é de raça!

Quero dar-te uma boa prata,
macutas de antigamente,
e mandar fazer cubata
onde tu vivas contente…

Com muitas, muitas esteiras,
onde o teu corpo se vingue
das dolorosas canseiras
em que a volúpia se extingue.

………………………………………………….

Carne com carne é a vida,
alma com alma o amor!

…………………………………………………...

Quero dar-te umas missangas
de pedrarias tão caras,
que sejam raro feitiço
nas tuas formas tão raras.

E quando tu fores minha,
ó linda pitanga em flor,
quero que sejas rainha
no Sabá do meu amor!



Colono


A terra que lhe cobriu o rosto
e lhe beijou o último sorriso,
foi ele o primeiro homem que a pisou!

Ele venceu aterra que o venceu,
ele construiu a casa onde viveu…
Ele desbravou a terra heroicamente,
sem um temor, sem uma hesitação,
– terra fecunda que lhe deu o pão
e lhe floriu a mesa de tacula…
Mas quando olhava a imagem pequenina
– Senhora da Boa Viagem –
que a mãe lhe pôs ao peito à hora da partida,
o Homem forte chorava…

Foi arquitecto e foi também pintor,
porque pintou de verde a sua esperança…
Esculpiu na própria alma um sonho enorme,
por isso foi também grande escultor!

Foi genial artista e mal sabia ler!
O que aprendeu foi Deus que o ensinou,
lá na floresta virgem, imensa catedral,
onde tanta vez ajoelhou!

Viveu a vida inteira olhando o céu,
a contar as noites
da lua nova à lua cheia.
E o sol do meio-dia lhe queimou a pele,
o corpo todo e até a alma pura.

Foi médico na doença que o matou,
ao homem ignorado e primitivo,
que derrubou bravios matagais
e junto deles caiu,
como caem arvores sacrificadas
à abundância dos frutos que criaram…

E a primeira mulher que amou e quis
foi sua inteiramente… 
E era negra e bela, tal como o seu destino!
E ela o acompanhou
como a mais funda raiz
acompanha a flor de altura
que perfuma as mãos cruéis
de quem a arrancou.

……………………………………………………………

Foi o primeiro em tudo,
na Dor e no Amor,
na Honra e na Saudade,
porque nunca mais voltou…

E nas terras de toda a gente
e de ninguém…
– estranha criatura! –

… foi sua também
a primeira sepultura!




Tomaz Vieira da Cruz
“Quissanje”





Notas:
ALAMBAMENTO ou, mais propriamente, ALEMBAMENTO - Dote do noivo à família da noiva, regra geral em gado e outros animais domésticos, vestes, mantimentos ou dinheiro, condição fundamental para tramitação do noivado. Tributo de honra prestado pelo noivo à família da Noiva [Óscar Ribas].

CUBATA - Casebre de barro seco, coberto de capim seco, folhas de palma ou mateba (espécie da palmeira). Variando a sua forma de povo para povo, genericamente a cubata da metade N de Angola é retangular e circular a dos povos do S.

MABELA - Tecido entrançado de folha de mateba (espécie de palmeira), que serviu de moeda de troca.

MACUTA - Moeda de prata equivalente a dez paninhos de mabela; moeda de cobre no valor de 30 réis, unidade de conta da moeda angolana. Antiga moeda que circulou em Angola até à quarta década do sec. XIX, com o valor de 30 réis.

MISSANGA - Pequena conta de vidro ou outro material com que se confecionam colares, pulseiras e outros adereços; é também utilizada nas tranças dos penteados tradicionais.

MUCANDA -  Carta, bilhete, papel; qualquer escrito. fig. Recado.

PANO - Peça de vestuário tradicional feminino. Em Luanda veste-se traçado sobre o corpo, das axilas até a altura do tornozelo e cobre o restante vestuário, que inclui o pano-saia, atado à cintura.

QUINDA - Balaio; cesta em forma de alguidar, de vime, junco ou casca de árvore.


QUISSANJE - Instrumento musical do grupo dos lamelofones, constituído por uma tábua ou placa de madeira de espessura de poucos centímetros e forma retangular, tendo montado, na metade superior, um cavalete de ferro constituído por um aro retangular, a cutelo, onde se apoiam as lamelas que servem de palhetas ou teclas. Um travessão de ferro, no sentido transversal, apoia-se sobre as teclas e é apertado por ganchos de arame que vão do fundo da tábua e amarram o conjunto. Apresenta de sete a dezasseis palhetas (de bordão, bambu ou metal), havendo casos da existência de vinte e duas.  Pode ser-lhe adaptada uma cabaça truncada que serve de caixa de ressonância ou amplificador.

QUITANDA - Tabuleiro, maleta ou quinda onde o vendedor ambulante transporta os produtos.

QUITANDEIRA - Aquela que faz negócio em quitanda, dona de quitanda; pequena comerciante; vendedora ambulante que percorre as ruas, com um tabuleiro dependurado ao pescoço (neste caso, geralmente, rapazes, vendendo bolos e outra doçaria.


TACULA - Dá-se o nome de tacula à madeira da taculeira (Pterocarpus tintorius), com veios de carmesim brilhante em exposição ao ar, à sua serradura ou à própria árvore.  A madeira é utilizada em mobiliário e tinturaria mas não só. O pó de tacula, obtido por fricção num tijolo ou pedra, emprega-se em ritualismo.



última atualização:
1.12.2017.



Karingana ua karingana


Karingana ua karingana

Este jeito
de contar as coisas
à maneira simples das profecias
– Karingana ua Karingana
é que faz a arte sentir
o pássaro da poesia.

E nem
de outra forma se inventa
o que é dos poetas
nem se transforma
a visão do impossível
em sonho do que pode ser.

– Karingana!



Guerra

aos que ficam
resta o recurso
de se vestirem de luto

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Ah, cidades
favos de pedra
macios amortecedores de bombas.



Um género de cães ao desbarato
poetas cafres adoçam as nongas
ancestrais dos versos na obsessiva
carne tenra dos açaimos.


A minha dor


Dói
a mesmíssima angústia
nas almas
perto e à distância.

E o preto que gritou
é a dor que se não vendeu
na hora do sol perdido.


Aforismo

O preconceito da ave
não é o tamanho das suas asas
nem o ramo em que poisou

Mas a beleza do seu canto
a largueza do seu voo…
o tiro que amatou.



Poemazinho Eterno

Os amigos
 eram falsos como Judas.
Ah, como Judas, não.
Judas arrependeu-se.

Os amigos
eram mesquinhos como Judas.
Ah, mesquinhos como Judas, também não.
Judas vendeu Cristo
e enforcou-se.




José Craveirinha
“Karingana ua caringana”




notas:
Karingana-ua-karingana: forma clássica de iniciar um conto e que possui o mesmo significado de “Era uma vez”.

Nonga: pau que funciona como cajado e que serve de arma de defesa ou de ataque,  geralmente de superfície polida pelo uso.






última atualização:
1.12.02017.


A Maresia e o sargaço dos dias

Mar


Bebo-o a colherinhas de olhos
na taça da manhã.
E nem ele se esgota,
nem eu me sacio.

Imagem no espelho
raiz de pedra,
corpo de vento,
olhos de água.
Assim sou
entre pássaro, flor e mágoa.



Manhã

Manso, manselinhamente,
as águas retiradas
começam a lamber as areias.

Maré de beijinhos



Armas*

Do mar

Um barco, embalo de sonho, na noite.
Uma vela a desfraldar a alegria, na antemanhã.
Uma poita para ancorar o meu coração às águas.

Da beirada

A ganha-pão colho a esperança dos dias, na espuma da maré.
Com a graveta entressacho lembranças com lírios das dunas.
A carrela é o meu andor de afectos a não perder.



Luísa Dacosta
“A maresia e o sargaço dos dias”




* Em A-Ver-o-Mar chamam-se armas aos instrumentos de trabalho.







última atualização:
1.12.2017.

O Farol

Acende quatro vezes o farol,
quatro janelas que frente à luz passam

O intervalo escuro de seguida
desilumina toda a noite, a água

era um enigma
que a luz não decifrava

e o farol um astro
no alto de invisível coluna colocado

Acende quatro vezes
procurando-nos como

se na água da
noite existíssemos todos

O farol é um corpo, irreal
como os outros





Gastão Cruz
“A Moeda do Tempo”




última atualização:
1.12.2017.


Há Amor!!!

Por Aqui…

Amo tudo o que mexe…
As ondas… vagas do mar
A água do rio que desce
O vento a enxovalhar
A plantinha que cresce
Um coelhinho a saltitar…

Amo tudo o que mexe…

A Natureza a não desistir…
A terra que s’esboroa do monte
Os calhaus a rolar
As folhas das árvores a cair…
Água que brota da fonte
Os passarinhos a esvoaçar…

Amo tudo o que mexe …

Gente que circula andando…
Formiguinha trabalhando
Azáfama de tempo mundano…
Fábrica… a pão exalando
Página de livro se voltando
Teatro de vida profano…

Amo tudo o que mexe…
Comigo…




Adélia Vaz
“Palavras Nossas”, volume I





última atualização:
1.12.2017.

Mar novo

1

E a embarcação aparecia como um barco de recreio.

Do pescador a musculatura dolorosamente suada
merecia uma simples pincelada
de silhueta negra
impressionismo fácil
afirmação exótica de que o dongo
não andava sozinho.


2

Mas é novo este azul    tela rasgada
é novo o nosso olhar.

É nova esta forma gestual de espuma
feita sabor de amor de guerra e de vitória
em nossas bocas férteis em nossa pálpebras
de antigo medo clandestino
soletrando a lágrima
quando era o nosso mar recordação também
escravizada:
caminho secular de ir e não vir.


3

É nova esta areia
este marulhar de fogo nos ouvidos
quase notícia do rebentamento maior
sobre o inimigo.

É novo este calor como se o sol
fosse um ananás coletivo suculento
rasgado pelos dedos da madrugada mais quente
e mais suave.


4

E é bom medir a água evaporada
sobre a concha
a alga
a rocha.

Medir também teu corpo natural
onde encontrar a boca
os pés
os olhos
a palavra.


5

E é bom verificar as mãos. Principalmente
as nossas mãos umedecidas pelo mar.

As mãos que tocam as coisas
As mãos que fazem as coisas
As mãos. As mãos terminal de carga
e de descarga do nosso pensamento

As mãos mergulhadas sob a água.
na (re)descoberta tímida das essências
no pulsar submarino de uma nova esperança.


6

Tudo é fugaz
entre o desenho do teu pé na areia
e a onda que desfaz
a marca

Entre a guerra e a paz
retorno fisicamente o poema      a onda
constante meditação primeira.

Nós e as coisas.

Nada permanece que não seja
para a necessária mudança.
Que o diga o mar.





Manuel Rui
"Cinco vezes onze - poemas em novembro"









última atualização:
1.12.2017.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Biobibliografia

2017


Obra publicada:


Solaris, o oitavo mar” – Admário Costa Lindo/joaQuim 6-Cento - (Corpos Editora/World Art Friends, Porto, 2011);

Euracini, de pátrias e maresias” – Admário Costa Lindo/agoNia Moitão, o Facada - (Corpos Editora/World Art Friends, Porto, 2012)

Makamba ou o voo do flamingo” - Admário Costa Lindo – [e.a. (CreateSpace/Amazon, U.S.A.), 2013)].


Próximas edições:

o bico-de-lacre e o tarrote (dos pássaros sem fronteiras e do bicho careta)” – trilogia:
I – “o livro dos tarrotes” – Admário Costa Lindo/agoNia Moitão, o Facada
II – “o livro dos bicos-de-lacre” - Admário Costa Lindo/obra conjunta
III – “o livro dos bichos-caretas” - Admário Costa Lindo

 “Da refrega e outros poemas” – Admário Costa Lindo

6-Cento & os outros” – Admário Costa Lindo

Em organização:


O Angolense - dicionário da linguagem angolana” – Admário Costa Lindo
(encontra-se em publicação, a 3ª edição online, revista e aumentada)



agoNia Moitão, Paulo Garcia, Txitoka Menangula e joaQuim 6-Cento, são meus irmãos gémeos, em sina. Alter-egos singulares, contam coisas estranhas, muito estranhas por vezes. Porém recusam-se terminantemente a fazê-lo sob qualquer forma impressa. Acham que tudo aquilo o que contam não tem a importância que eu lhes quero dar.

O curioso de tudo isto é que as suas estóras se entrecruzam sempre, não fossem eles almas da mesma pele.

A minha luta, ou função se quiserem, é passar para o papel o que eles me vão contando, um pouco ao jeito das malundas tradicionais. (1)

agoNia Moitão, O Facada, nasceu na Póvoa de Varzim (Portugal) e pelos pais foi levado para Porto Alexandre (Angola) com três anos de idade;
em criança acalentou o sonho de ser pescador, mestre de sacada;
tornou-se guarda de livros.

Paulo Garcia, aliás Sapalo Monakitembu, nasceu no Pinda (Angola);
foi pescador do atum e das garoupas, pescou quiandas e uma deu-lhe um filho;
foi louco, autista e bandido, de acordo com a consciência de certos homens da terra;
tornado kanzumbi, discípulo dileto de Kalunga e protegido de Zambi, foi deificado como Deus-Herói protetor dos quimbares, que passaram a chamar-lhe o Deus Tximbari.

Txitoka Menangula nasceu no Bailundo (Angola), foi contratado em Porto Alexandre, estivador no porto de Luanda e guerrilheiro no Leste de Angola;
preso a 27 de maio de 1977, desapareceu sem deixar rasto;
reapareceu em 1979 em Portugal, para continuar a fazer aquilo que, verdadeiramente, sempre o entusiasmou: contar estórias.

joaQuim Bandika Fiengesa 6-Cento nasceu, presumivelmente, no Quitexe, norte de Angola, em março de 1961, na hora do fogo;
militante do nacionalismo e agitador político;
refugiou-se em Portugal, por desamor.


1. Narrativas tradicionais, de cariz histórico, que explicam a origem dos povos e nações.



última atualização:
14.01.2018

BioBibliografia 2018

Biografia : Sou reformado do Comércio & Serviços e dedico os tempos livres que, logicamente, são todos os momentos do dia e da noite,...