Quitandeira da Quitanda
Quitandeira sem cuidados,
à tua quitanda em venda
mandei hoje três recados,
pela Cassua Quilenda.
Dizia eu nessa fala,
nas falas que te mandei,
que, tendo ido à Quissala,
ainda lá não te encontrei.
Pelo que me resolvi
a escrever-te uma mucanda,
e a contar-te o que sofri,
Quitandeira da Quitanda…
– Adorável vendedeira
de ananases e goiabas,
eu quero ter a maneira
de podermos combinar
o que queres de alambamento
para contigo falar…
Que assim finde este tormento
de tanto te procurar…
Quero dar-te uns lindos panos
de sarja azul, de primeira,
para que os olhos profanos
te invejem nessa maneira,
de andar tão cheia de graça
a mais bela Quitandeira,
que, sendo negra, é de raça!
Quero dar-te uma boa prata,
macutas de antigamente,
e mandar fazer cubata
onde tu vivas contente…
Com muitas, muitas esteiras,
onde o teu corpo se vingue
das dolorosas canseiras
em que a volúpia se extingue.
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Carne com carne é a vida,
alma com alma o amor!
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Quero dar-te umas missangas
de pedrarias tão caras,
que sejam raro feitiço
nas tuas formas tão raras.
E quando tu fores minha,
ó linda pitanga em flor,
quero que sejas rainha
no Sabá do meu amor!
Colono
A terra que lhe cobriu o rosto
e lhe beijou o último sorriso,
foi ele o primeiro homem que a pisou!
Ele venceu aterra que o venceu,
ele construiu a casa onde viveu…
Ele desbravou a terra heroicamente,
sem um temor, sem uma hesitação,
– terra fecunda que lhe deu o pão
e lhe floriu a mesa de tacula…
Mas quando olhava a imagem pequenina
– Senhora da Boa Viagem –
que a mãe lhe pôs ao peito à hora da partida,
o Homem forte chorava…
Foi arquitecto e foi também pintor,
porque pintou de verde a sua esperança…
Esculpiu na própria alma um sonho enorme,
por isso foi também grande escultor!
Foi genial artista e mal sabia ler!
O que aprendeu foi Deus que o ensinou,
lá na floresta virgem, imensa catedral,
onde tanta vez ajoelhou!
Viveu a vida inteira olhando o céu,
a contar as noites
da lua nova à lua cheia.
E o sol do meio-dia lhe queimou a pele,
o corpo todo e até a alma pura.
Foi médico na doença que o matou,
ao homem ignorado e primitivo,
que derrubou bravios matagais
e junto deles caiu,
como caem arvores sacrificadas
à abundância dos frutos que criaram…
E a primeira mulher que amou e quis
foi sua inteiramente…
E era negra e bela, tal como o seu destino!
E ela o acompanhou
como a mais funda raiz
acompanha a flor de altura
que perfuma as mãos cruéis
de quem a arrancou.
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Foi o primeiro em tudo,
na Dor e no Amor,
na Honra e na Saudade,
porque nunca mais voltou…
E nas terras de toda a gente
e de ninguém…
– estranha criatura! –
… foi sua também
a primeira sepultura!
Tomaz Vieira da Cruz
“Quissanje”
Notas:
ALAMBAMENTO ou, mais propriamente, ALEMBAMENTO - Dote do noivo à família da noiva,
regra geral em gado e outros animais domésticos, vestes, mantimentos ou
dinheiro, condição fundamental para tramitação do noivado. Tributo de honra
prestado pelo noivo à família da Noiva [Óscar Ribas].
CUBATA - Casebre de barro seco, coberto de capim
seco, folhas de palma ou mateba (espécie da palmeira). Variando a sua forma de
povo para povo, genericamente a cubata da metade N de Angola é retangular e
circular a dos povos do S.
MABELA - Tecido entrançado de folha de mateba (espécie
de palmeira), que serviu de moeda de troca.
MACUTA - Moeda de prata equivalente a dez paninhos
de mabela; moeda de cobre no valor de 30 réis, unidade de conta da moeda angolana.
Antiga moeda que circulou em Angola até à quarta década do sec. XIX, com o
valor de 30 réis.
MISSANGA - Pequena conta de vidro ou outro material
com que se confecionam colares, pulseiras e outros adereços; é também utilizada
nas tranças dos penteados tradicionais.
MUCANDA - Carta,
bilhete, papel; qualquer escrito. fig. Recado.
PANO - Peça de vestuário tradicional feminino. Em
Luanda veste-se traçado sobre o corpo, das axilas até a altura do tornozelo e cobre
o restante vestuário, que inclui o pano-saia, atado à cintura.
QUINDA - Balaio; cesta em forma de alguidar, de
vime, junco ou casca de árvore.
QUISSANJE - Instrumento musical do grupo dos
lamelofones, constituído por uma tábua ou placa de madeira de espessura de
poucos centímetros e forma retangular, tendo montado, na metade superior, um
cavalete de ferro constituído por um aro retangular, a cutelo, onde se apoiam
as lamelas que servem de palhetas ou teclas. Um travessão de ferro, no sentido
transversal, apoia-se sobre as teclas e é apertado por ganchos de arame que vão
do fundo da tábua e amarram o conjunto. Apresenta de sete a dezasseis palhetas
(de bordão, bambu ou metal), havendo casos da existência de vinte e duas. Pode ser-lhe adaptada uma cabaça truncada que
serve de caixa de ressonância ou amplificador.
QUITANDA - Tabuleiro, maleta ou quinda onde o
vendedor ambulante transporta os produtos.
QUITANDEIRA - Aquela que faz negócio em quitanda,
dona de quitanda; pequena comerciante; vendedora ambulante que percorre as
ruas, com um tabuleiro dependurado ao pescoço (neste caso, geralmente, rapazes,
vendendo bolos e outra doçaria.
TACULA - Dá-se o nome de tacula à madeira da taculeira (Pterocarpus tintorius), com veios de
carmesim brilhante em exposição ao ar, à sua serradura ou à própria árvore. A madeira é utilizada em mobiliário e
tinturaria mas não só. O pó de tacula, obtido por fricção num tijolo ou pedra,
emprega-se em ritualismo.